Wladimir Gramacho
A cultura do cancelamento é um evento recente e complexo. Por um lado, dá justo poder a segmentos sociais historicamente desfavorecidos de eliminar vozes agressoras das redes sociais – ao menos das suas. Mas, quando não se trata de violência, o cancelamento acaba nos privando de diferenças de opinião ou perspectiva. Impede-nos de ter acesso a um dos grandes benefícios da democracia, que é a oportunidade de entender a realidade a partir do contraditório e do exercício da persuasão baseada em fatos ou argumentos novos.
Pois a direita tem “cancelado” a pandemia, evitando notícias sobre a Covid-19. Segundo o estudo “Informação e Desinformação sobre a Covid-19 no Brasil”, da Universidade de Liverpool, no Reino Unido, nada menos que 44% dos brasileiros que se definem como de direita disseram evitar notícias sobre a pandemia. Entre as pessoas de esquerda, essa aversão é relatada por apenas 23%, praticamente a metade. Os dados estão nesse interessante trabalho, assinado por Patrícia Rossini e Antonis Kalogeropoulos, ambos professores do Departamento de Comunicação e Mídia de Liverpool.
Se brasileiros à direita e à esquerda sofrem com os efeitos da mesma pandemia, o que pode explicar essa diferença? Segundo a psicologia, a ciência política e a comunicação, provavelmente se trata do fenômeno da “exposição seletiva”, isto é, essa tendência que todos nós temos de evitar informações contrárias às nossas opiniões e percepções da realidade e buscar sobretudo conteúdos que reforcem impressões pré-existentes. E esse não é um padrão de direita nem de esquerda, mas de todos nós.
Há diferentes razões pelas quais nosso cérebro costuma fazer isso. Pode ser para evitar um conteúdo dissonante em relação ao que já sabemos e que gera estranhamento ou ameaça nosso esforço por dar ordem ao mundo que nos cerca. Mas também pode ser por economia de esforços para processar novas informações contrárias às nossas visões de mundo e, assim, mantermos “aquela mesma opinião formada sobre tudo”. O cancelamento, entretanto, eleva essa inclinação a uma evitação extrema.
Nesta pandemia, a direita não tem “cancelado” só a imprensa. O estudo de Rossini e Kalogeropoulos também mostra que a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem 86% da confiança de pessoas de esquerda e apenas 45% da confiança de pessoas de direita. Já os cientistas estão em situação um pouco melhor. Nessa pesquisa, têm a confiança de 90% das pessoas de esquerda e de 70% das de direita.
Além disso, os dados de diferentes estudos mostram que existe correlação entre o voto em Jair Bolsonaro e a adesão aos protocolos sanitários. Em trabalho feito por pesquisadores da Fundação Getítulo Vargas (FGV), a localização geográfica de mais de 60 milhões de celulares foi cruzada com a votação de municípios em 2018. Conclusão: após manifestações do presidente contra o distanciamento social, a adesão ao distanciamento caía mais nas cidades mais “bolsonaristas”.
Mais recentemente, outra pesquisa apontou que, em 2021, houve uma maior aceleração de mortes por Covid-19 (em relação a 2020) nos municípios, estados e regiões que deram mais votos a Bolsonaro em 2018. No Piauí, estado com a menor votação em Bolsonaro no 1º turno, o percentual de crescimento dos óbitos é um dos mais baixos (34,6%). Já em Santa Catarina, estado com maior votação em Bolsonaro no 1º turno, a taxa de aumento de óbitos alcançou 200% este ano. Evitar notícias sobre a pandemia não cancela as mortes por Covid-19. Pode até aumentar, como sugerem esses estudos.
Fatos se impõem, como o sol do meio-dia em Brasília, onde o tempo costuma estar fechado, mas raramente há nuvens no céu.
Artigo publicado em 1º de maio de 2021, no Blog do Noblat (Metrópoles).
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